A luta pela revogação da Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário da ditadura empresarial militar, editada em 1983 e utilizada historicamente para perseguir defensoras e defensores de direitos humanos, não pode ser reduzida. Revogar esse entulho da ditadura não será feito por uma nova Lei, se esta lei preserva uma estrutura punitivista e reedita diversos dispositivos que remontam o texto original e a doutrina que deu origem à LSN. O Brasil teve diversas leis de segurança Nacional em sua história, mudar o nome de nada adianta se for mantido o conteúdo e a lógica que regem o autoritarismo e a repressão.
A Lei de Segurança Nacional tem sido aplicada de forma abusiva, até mesmo em relação aos seus desígnios já autoritários, com interpretação extensiva de seus artigos para perseguir vozes dissidentes por meio de abertura de investigações. Uma leitura atenta do substitutivo ao PL 2462/1991 mostra que o texto reedita crimes previstos na atual LSN: o crime de “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito” (que possui redação similar aos artigos 17 e 18 da lei atual), de “Sabotagem” (similar aos artigos 15 e 19 da LSN), “Espionagem” (que reedita o artigo 13 da lei vigente), e os “crimes contra a honra” e os chamados “crimes de opinião” (como os atuais artigos 22, 23 e 26 da LSN).
No debate sobre a nova lei, que ocorreu nesta terça-feira (04) na Câmara dos Deputados, a deputada Taliria Petrone, líder do PSOL na Câmara, foi duramente atacada quando orientou o voto contrário da bancada ao texto do projeto. A deputada acolheu as análises de que a versão final do texto ainda preserva diversos problemas herdados da ideologia da antiga Lei de Segurança Nacional. Apontamos, desde o começo desse debate, os problemas com o processo legislativo e os limites estruturais do texto do projeto de lei, a começar por sua votação em regime de urgência. Por chamar a atenção para essas contradições, a Deputada Federal foi atacada por parlamentares. Mais grave, seus argumentos foram contraditados com uma retórica superficial. Há de se ressaltar que um debate legislativo, que pretende-se democrático, não pode partir de falas eivadas de violência e misoginia, contra a Deputada que levou a público o posicionamento de movimentos e organizações que eram contrárias ao projeto. Já demonstra a precariedade do respeito ao próprio procedimento democrático que marcou todo o processo de trâmite deste PL até o momento. À deputada prestamos nossa solidariedade. Também saudamos a integridade e coerência de vários parlamentares que seguiram nesse processo.
São inaceitáveis os discursos de parlamentares que alegaram que um Projeto de Lei votado em regime de urgência foi debatido num ambiente de escuta e participação popular. Ora, em plena pandemia a Câmara decidiu pelo regime de urgência. Não há como produzir uma legislação que defenda a democracia restringindo a participação social e a transparência do procedimento legislativo, que não leve em consideração sequer os pontos divergentes. Inclusive, a relatora e diversos deputados fizeram menção a todas as entidades escutadas no processo como se em si mesma a participação de algumas entidades legitimasse o texto aprovado a priori. Ao construírem um discurso de consenso e acordo, os deputados ignoraram em suas falas a existência de posicionamentos contrários e fundamentados ao texto e ao processo. Posicionamentos esses que foram publicamente manifestados tanto em audiências públicas como em notas técnicas produzidas por organizações e movimentos sociais.
São igualmente inaceitáveis os argumentos que tentam conferir à nova lei uma aparência de proteção ao Estado de Direito ou a ausência de riscos para os movimentos sociais. São amplamente conhecidos, documentados e comprovados no Brasil o impacto do sistema de justiça criminal sobre os corpos historicamente reprimidos.
Não há como negar o objetivo real da Lei Penal construída em estados estruturados na desigualdade de classe, no racismo e no machismo. Sabemos, e não é de hoje, o resultado desse processo de criação de novas normas penais: a criminalização da pobreza, da negritude e do protesto social. Não precisamos resgatar um passado distante, basta observarmos a utilização da Lei sobre Organizações Criminosas. Também sabemos que a mera previsão de excludentes de ilicitude, como os esforços de tentar incluir na lei hipóteses em que ela não pode ser invocada contra manifestações sociais, não garantem, e não têm como garantir, que todo Delegado de Polícia, Promotor de Justiça ou Juiz de Direito fará uma interpretação garantista e atenta ao direito humano à liberdade de expressão, reunião, opinião, manifestação, como pilares da democracia.
Por essas razões, nossas organizações reafirmam:
Somos a favor da revogação da Lei de Segurança Nacional!
Denunciamos aqui que o texto em votação reedita outra LSN e, portanto, a revogação não está sendo realizada de fato.
É uma contradição argumentar o caráter democrático de uma lei de proteção do Estado de Direito que tem o punitivismo como aposta
O regime de urgência viola o princípio constitucional do devido processo legislativo
A natureza criminal da “nova” lei inevitavelmente importará em consequências àquelas e aqueles historicamente criminalizados
Uma lei que resgata artigos contidos na LSN não pode ser defendida como uma lei que enterra um entulho autoritário.