Por Tatiana Lima
Moradora do Conjunto de Favelas da Maré, Gilmara Cunha, 39 anos, atua na proteção de defensoras e defensores de direitos humanos há 25 anos. Integrante da organização Conexão G de Cidadania LGBT, organização da sociedade civil que existe há 17 anos na Nova Holanda, uma das 16 favelas do Complexo da Maré. Mulher negra periférica, ela é uma das vozes defensoras que luta na promoção da saúde, cultura, educação, desenvolvimento territorial e, sobretudo, segurança pública para todos os corpos em uma sociedade mata corpos negros, periféricos, favelados e de mulheres todos os dias.
Dona de um sorriso largo e uma gargalhada contagiante, Gilmara é uma mulher estonteante. Possui uma presença vigorosa que preenche o espaço e um olhar atento que não deixa escapar nada. Tem uma escuta atenta e cuidadosa ao conversa com o outro. Seus olhos brilham e transmitem uma luz que atravessa a tela do computador.
Líder comunitária e defensora dos direitos LGBTQIA+ nas favelas, Gilmara foi a primeira mulher trans a receber a Medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ela é diretora executiva do Conexão G, uma organização da sociedade civil LGBT das favelas. Chamada por diversas de “Mãe de Todes”, a luta da defensora de direitos humanos resultou em ações em prol do coletivo como a criação do primeiro Centro de Promoção de Cidadania LGBTQIA+ de uma favela, em 2021.
Realizada em 2023, essa entrevista com Gilmara, abre a editoria Vozes Defensoras no portal de notícias do CBDDH. Neste bate-papo, ela abre o coração sobre “ser uma sujeita política em ação permanente”, refletiu sobre seu papel como uma voz defensora e refletiu sobre o tempo contemporâneo da experiência de corpos de mulheres periféricas. Ela ainda fala da luta e resistência das pessoas LGBTQIAPN+ e sobre como a “sociedade tem uma perspectiva de que mulher nasce”, enquanto construção de olhar de mundo de designação de sexo (biológico), quando a perspectiva de si de cada indivíduo e de seus corpos revela como ser uma mulher é um movimento de torna-se, e não uma designação (sexo) corporal biológica e/ou social da condição do corpo do indivíduo no nascimento.
CBDDH: Como você se identifica?
– Sou do Complexo Maré e sou uma mulher negra periférica. Apesar de ter um corpo masculino, a minha mente já era uma mente feminina. Então, a minha construção, da minha identidade, ela não começa há pouco tempo, é desde a minha infância, quando eu já me identificava com uma mulher. Ela começa desde esse processo, o que é muito bacana pensar e discutir sobre isso porque as construções sociais, elas vão acontecer depois. As terminologias vão surgir depois, mas esse lado feminino empírico já estava dentro de mim.
CBDDH: Como a sua atividade como defensora de direitos humanos e ativista LGBTQUIAP+ começou? Você fundou a Conexão G? Conta um pouco desse processo.
– Primeiro, eu acho que vale a pena ressaltar que esse movimento LGBT ele não começa a partir do Conexão G. Ele começa a se organizar a partir do Conexão G. Mas na década de 1980, na Maré, existia os grandes shows chamado Noite das Estrelas, que era ali mesmo naquela época o movimento, de entretenimento, mas um movimento de levar a alegria para família, mas ainda assim era um ato político porque essas meninas expunham seus gêneros, se apresentavam nesses palcos, usando o lúdico inconscientemente para demarcar a existência do seu corpo… para demarcar a existência dentro daquele espaço da favela. Em 1999, eu entro para o movimento (LGBTpensando em como acessar esses serviços. As leis construídas para o nosso público… Aí você pode se perguntar: E hoje? Tem acesso? Já consegue? Não, né? Essas leis ainda não são construídas para nossa população periférica e é aí que eu tento, que eu entro dentro desse movimento para buscar informações, acessar redes e lutar por leis e acesso. E também uma forma de também se mostrar visível, né? Estou fazendo um livro que é justamente assim: são relatos de uma população invisibilizada e invisível aos olhos da sociedade, porque se a gente pega e olha vê a pobreza como tema em ascensão, mas não os pobres. Hoje você tem um discurso aí governamental de ascensão da pobreza, mas os pobres continuam vivendo operações policiais, violências, sendo desfavelados (removidos das favelas)…
CBDDH: Então, é preciso ter um cuidado de achar que a gente já conseguiu acessar direitos e avançar?
– A gente conseguiu alcançar alguma coisa, porque isso tem muito a ver com a política, mas a gente não está, existe e vive em qualquer lugar. Por isso, sigo. Comecei em 1999, eu comecei na favela um movimento, uma ação de movimento na Maré, pensando nesse grupo que demarca sua existência pensando nesse coletivo (Conexão G), mas só se efetiva de fato em 2006 oficialmente com documento. Começa ali nosso trabalho de pensar em eixos norteadores: de como que a gente poderia não só acessar direitos (a nossa população), mas também de levar as informações que não chegavam nessas comunidades. E o nosso primeiro eixo, que continuamos trabalhando, bem sendo o eixo saúde. Isso porque lá nos anos 2000, a gente combatia com informação vinculada da AIDS aos LGBTs, a questão da peste gay…Eu me recordo que as pastas que mais tinham recurso destinado para nossa população era a saúde. Só agora a gente chega num tempo da nossa trajetória de luta que, a gente começa identificar que esses corpos de gênero, tem outras demandas que perpassam cotidianamente dentro daquele território, e não naquele corpo. Então a gente começa a identificar porque o saneamento básico era importante ser discutido, a segurança pública, a alimentação segura, e na pandemia isso vai ficar muito mais forte. O quanto a gente precisou se mobilizar e se juntar para poder atender os nossos, né? E aí a gente começa a construir os eixos que vão nortear os nossos trabalhos com educação, empregabilidade, enfrentamento ao racismo, direitos humanos e a própria constituição de política, mas também de luta por espaços e contra a lógica do capitalismo. Lideranças comunitárias, periféricas, têm dificuldade ainda de alavancar o seu trabalho, porque a gente vive numa hegemonia das grandes organizações governamentais branca e classista, né? Eu tenho dito que a gente precisa mesmo erradicar o capitalismo, né? A branquitude enfrenta também o capitalismo, mas mesmo juntos, esses espaços de resistência e político mesmo com nossa presença lá lado a lado, não é construído para nós, não é para estarmos. Isso ficou muito claro para mim quando eu chego na Suíça para participar da RPU (Revisão Periódica Universal ONU) o quanto esse espaço ainda não está preparado para receber uma mulher transgênero, porque o lugar de gente branca é de pessoas cis. Eu tenho feito uma análise de um tempo para cá que nós somos apenas um público para ser citado em relatórios. Mas de fato querer que a gente esteja atuando nos processos…isso não ocorre. Então, por exemplo eu percebi que lá no rolé Internacional é toda hora todo mundo “ah a população trans tá aqui, a gente produziu um relatório para acabar com a questão do feminicídio….” E o das mulheres trans?, eu pergunto. Porque se a gente entendesse que o transfeminicídio também é feminicídio, não teria que fazer essa separação. Mas a gente não entende, e aí precisa separa devido a lógica capitalista cis normativa. Se a gente fizesse uma leitura de que a mulher trans é uma mulher e ponto, não precisaria dizer mulher trans. E por quê trans? Porque ali você começa identificar que ela tem um “falo” (pênis), você demarca porque você não diz mulher puramente. Então, quando eu chego nesse lugar, eu começo a perceber que a gente só é esse público para aparecer no dito…que o que fazem muito com as favelas, né? Citam, botam ao lado, mas ao lado para botarem cabresto…e aí você só segue o que a gente disser, quem fala por você sou eu.
CBDDH: O que aconteceu efetivamente no espaço da Suíça na RPU? Melhor, o que precisa acontecer nesse espaço para todas as mulheres serem igualmente respeitadas?
– O que que precisa acontecer é essa branquitude não demarcar essa divisão, primeiramente, entender que precisam estar nesse lugar para ele existir para todas, porque hoje esse espaço é um lugar que não se fomenta a participação delas. Não basta ser acolhedor. Precisa a gente está lá de forma integral e indissociavelmente, e não as representações serem geralmente de homens brancos nos citando. Há parte de nós lá, são poucas que conseguem, e mesmo assim o quanto a gente as vê em um processo violento. Isso me chamou muita atenção no Chile, quando eu fui para um encontro afrodescendente, e majoritariamente eram homens fazendo o papel técnico e as mulheres que foram, eram levadas e colocadas no lugar da revitimização, porque eram elas, as mulheres, que eram violentadas sendo citadas pelos homens no papel técnico, porque eram as dores que aquelas mulheres sofreram sendo discutido o tempo todo, entende? Porque levar a mulher ali para reviver essa violência do Estado dentro do Estado é algo muito doloroso. O que deve acontecer? A gente desconstitui esses espaços e reconstruir. Pensar agora quem são essas pessoas… quer reconstruir o Brasil, mas não se vê todas as mulheres. Às vezes você até vê uma ou outra, mas sem poder. Elas estão ali dando um tom de movimento diverso…Por exemplo, eu fiz uma formação numa empresa, e aí o cara diretor l, que supõe ser uma empresa avançada…. diz pra mim assim: “a gente tem mulher trans”. Parece até bacana, mas o que ela faz? perguntei. Ele falou: “ela corta papel.
CBDDH: E como se cria espaços não violentos em qualquer lugar?
Não sendo sempre o espaço onde nosso corpo está sendo construído apenas para ser um espaço de acolhimento, mas um espaço de ocupação, vamos dizer assim. Sendo um espaço literalmente de ocupação. Não acabar consciente ou inconscientemente repetindo violências, sejam as diretas ou as indiretas. Então, a dimensão é estrutural, né? Em todos os campos de ocupação? Gilmara: sim, de como esses corpos não conseguem chegar, ter acesso a todo um mundo de instrumentação para, por exemplo, se formar e estar em ocupação de espaço de ser uma pessoa quem decide a política, que hoje infelizmente são majoritariamente de pessoas héteros, sejam negras ou brancas. Falo de um lugar estrutural que perpassa tudo e que tutela os nossos corpos e diz o que vai nos dar e o que que não vai dar. É desconstrução, precisa passar pelo processo de instrumentalização muito forte, inclusive, os espaços de direitos humanos, sabe? Não pode ser apenas um espaço onde se tenha essas lideranças trans, mas que essas lideranças consigam estar lá e fazer a transformação dentro desse espaço. O Comitê e seus espaços, por exemplo, não podem ser apenas um espaço onde tenha essas lideranças, nós mulheres identificadas como trans, mas que essas lideranças de uma certa forma consigam fazer a transformação por dentro desse espaço. Eu acredito que o processo é transformador, né? Um processo educacional, acho importante isso acontecer. Veja, certa vez, em uma palestra, a pessoa disse que discordava da minha fala, que nomenclaturas são essenciais, que eu não podia estar ali não trazendo nomenclatura. Aí eu falei assim: “pois é, querida, é que eu acho que você ainda não foi capaz o suficiente de entender que esse rolé das nomenclaturas, não é algo principal para gente, porque o que a gente está lutando cotidianamente é pela existência da vida”. Então, eu falo de um lugar que tem os civis armados e tem a política de extermínio do Estado, entende? A gente luta cotidianamente para que esses corpos sobrevivam dentro daquele território. O estado entra de manhã e faz o que faz nas favelas e à noite tem o poder armado, né? Nossa preocupação é a gente luta para saber quem é Dandara? Quem é a Gilmara?… Então, como essa pessoa branca vai pode criar metodologia de sobrevivência dentro daquele espaço se ela não sabe quem é a Gilmara? Dandara, Luana, Ana… É para além desse corpo, é para além do nome, para além da idade…
CBDDH: E o que é preciso fazer para transformar espaços de direitos humanos em espaços seguros para todas as mulheres defensoras, não sendo violento para nenhuma delas? Quem é Gilmara? Como a Gilmara se pode se sentir segura em um espaço?
– [Respira fundo] … a Gilmara é uma mulher que gosta de esporte, guerreira… uma mulher que vive muito na solitude, e não na solidão, isso é importante. É uma mulher que chora, uma mulher que se sente desafiada todos os dias, que pensa que não é sobre ela, é sobre pessoas que ali vivem, que a seguem, e que a tem como referência… é no seu íntimo uma mulher… uma mulher que almeja muitas coisas, mas se aniquila também de muitas coisas para que esse movimento exista. Porque nós líderes, defensoras, a gente se se abdica de várias coisas pra poder lutar pelo coletivo, porque eu tenho uma concepção de que a gente se aliena no coletivo e procede individualmente. Então, essa é a missão que eu trago, que eu fui empurrada, né? Que eu não diria que eu que fui atrás… eu acho que foi o poder de liderança que me fez ocupar, né? Mas, também me fez viver momentos muito tristes… de solidão, de solitude, choro… Enfim, não vou conseguir, não vou dar conta… sabe? Meu analista bem dizia: “você precisa entender que você não é uma mulher maravilha, precisa tirar essa roupa e dizer para você e para os outros que você também chora. … eu acho que nada dá conta de quem se é… é humano, né? Então, não tem como… eu vou ficar aqui falando, falando, falando, mas tudo que eu disser ainda assim não dá conta de quem é esse corpo, de quem é essa pessoa, de quem sou eu. É Gilmara que tem talento de liderança nato que acabou colocando-se a serviço dessa causa? Ou é a Gilmara que tem um talento nato de liderança que acabou sendo empurrada? A violência que a gente vê então desencadeou a minha vida? Porque por exemplo eu não consigo andar de transporte público e nem estar sozinho, pois eu tenho a sensação de que eu vou ser violentada…Então, meu corpo é um lugar muito bacana, mas é um lugar também que adoece, pois minam a saúde mental dele. E isso é agressivo. Então, é preciso entender que é essencial ter um cuidado com esse corpo. Se no Estados Unidos o branco é branco, negro é negro, no Brasil, mulher é mulher, homem é homem, a identidade de gênero não tá colocada nesse lugar, então, não existe interseccionalidade… porque se eu falo de transfeminicídio e falo de feminicídio e, o transfeminicídio não é quantificado no feminicídio, então, não tem interseccionalidade. Ainda é uma categoria, ainda eu te vejo como uma identidade, eu não te vejo como mulher. É igual a nome social… Gente, a gente já passou dessa pauta! A gente quer politizar a vida, a existência sabe? Existem mais de 100 projetos anti-trans isso é preocupante. A gente está em alta, mas é preciso pensar no projeto que nos mata, pois é a reação de quem não quer nem que seja visível a nossa existência, porque se não for visível, não lembra que você existe. Então, é mexer na estrutura, pois pra gente a democracia ainda não existe. A gente luta para uma democracia que é falsa, que democracia é essa que não tenho dignidade de existência? Não tenho saneamento básico? A gente não tem nem empatia social. Porque da sociedade a gente tem o caso de Dandara, é a democracia que ainda não consegue se compadecer daquele corpo, daquela pessoa… outro dia, eu fui discutir um projeto e o financiador falou pra mim: “Mas se a gente pensasse num projeto e não discutisse nenhuma raça e nem gênero?”. Pasme! E eles são uma instituição LGBT. Respondi que o projeto pensa vidas, porque o Conexão G entende que esse projeto pode salvar vidas, se trata de uma metodologia de sobrevivência e de existência.
CBDDH: E como você se descobriu defensora de direitos humanos?
– De ter consciência estrutural? No sentido de que o outro conceitua como defensora de direitos humanos? Olha, eu acho que eu sempre tive isso dentro de mim. Meu corpo é um corpo produtivo. Quando eu era menino para a sociedade esse corpo ali já gritado contra as balas de fuzis, desviada do caveirão, ali já era um ato político… da própria existência. A gente que é da favela já vem com isso. A gente não se descobre defensora, não é como se fosse uma profissão. Você vê aquelas coisas que você se indigna né? Desde pequena já era essa a minha potência.
CBDDH: O que a gente deixou de te perguntar, mas que pra você é muito importante fazer parte desse seu perfil como defensora de direitos humanos?
– … Eu não consigo me dividir, né? A Gilmara é inteira. A Gilmara não é parte. E nem deve ser. Ela é inteira. Eu sou inteira. Faltou eu dizer isso. A Gilmara é inteira e não parte. Aliás, esse é um bom título para essa entrevista. É assim que eu gostaria de ser apresentada.