A quarta edição do Dossiê Vidas em Luta registra um retrato histórico do Brasil de Jair Bolsonaro
“Eles agrediram e prenderam indígenas dissidentes e eu estaria morta também se eu não tivesse saído 30 minutos antes da minha casa em Ronda Alta, cidade próxima da Terra Indígena Serrinha. Encostou uma caminhonete com gente armada em frente à minha casa me procurando. Eu preferia não ter passado pelo trauma de ter que sumir do dia para noite e deixar todas as minhas coisas para trás.”
A declaração é de Fernanda Kaingáng, do Instituto Indígena Kaingáng. Ela se encontra exilada da Terra Indígena Serrinha desde outubro de 2021, por ter auxiliado o Conselho de Anciãos do Povo Kaingáng a denunciar o arrendamento ilegal das terras indígenas no Rio Grande do Sul, sob a chancela da Funai e do Ministério Público Federal, que beneficia os brancos do agronegócio plantadores de soja.
O conflito dentro das terras do Povo Kaingáng, junto com outros sete casos emblemáticos de violações de direitos humanos acompanhadas pelo Comitê Brasileiro, fazem parte da 4ª edição do dossiê: “Vidas em luta: criminalização e violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil”.
Trata-se de um estudo inédito e histórico no qual o Comitê Brasileiro analisa a precarização do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), como responsável pelo aumento de mortes e de ameaças a DDHs no país.
Organizado pelo conjunto de 45 organizações e movimentos sociais que compõem o Comitê, o dossiê tem como marco temporal os últimos quatro anos de governo federal (2019-2022), período em que o Brasil foi governado pela extrema-direita.
Uma escolha feita pela entidade devido ao estado de exceção de direitos humanos imposto por Bolsonaro e o conturbado cenário eleitoral, no qual cargos de governos de Estado, Congresso Nacional, Assembleias Legislativas Estaduais e a presidência da República estavam em disputa.
O estudo é um retrato de como a política de austeridade do governo de Bolsonaro e o enfraquecimento de conselhos de participação popular comprometem todo o sistema de políticas públicas de proteção integral para DDHs, vulnerabilizando DDHs em todo território nacional. “A pesquisa revela quais são os corpos físicos, rostos, vozes, peles e subjetividades, isto é, quem são os sujeitos políticos que, mesmo violados e em risco iminente de morte, lutam pelos direitos humanos no Brasil”, destaca Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global, entidade membro do Comitê.
E conclui: “Acreditamos que, mais do que números, as vozes e contextos apresentados nesta 4ª edição do dossiê demonstram as sobrevivências e o trabalho incansável de defensoras e defensores para a sociedade brasileira”.
Fundo emergencial
Entre 2019 e 2022, 59 defensoras e defensores de direitos humanos receberam apoio do fundo emergencial da entidade, em 52 casos acompanhados em 15 estados. “Providenciamos aquisição de câmeras, construção de muros em casas de defensores e sedes de organizações, recursos para realizar transporte, contratar assessoria jurídica e até a compra de alimentos”, ressalta Luciana Pivato, Coordenação do Programa Nacional Direitos e Políticas da Terra de Direitos, entidade membro do Comitê.
Do total de 59 apoios, 29 foram para DDHs em contextos rurais e 20 vivendo em área urbana. Ao menos sete dos apoios emergenciais foram realizados devido a conflitos diretos com grandes empreendimentos: militares, petrolíferos, da mineração e de usinas hidrelétricas.
Os casos ilustrados no dossiê “Vidas em Luta”, denunciam o cenário complexo de violências contra lideranças quilombolas, indígenas, mulheres, da população negra e LGBTQIA+ no Brasil, ilustrando um país mergulhado em conflitos.
Proteção simbólica
A pesquisa revela ainda que, o principal programa de proteção voltado para a proteção de DDHs, o PPDDH, tornou-se apenas uma proteção “simbólica”. Com a redução drástica de recursos, o mal funcionamento do programa expõe DDHs como a parlamentar Benny Briolly, vereadora da Câmara Municipal de Niterói, no Rio de Janeiro, a ameaças e risco de morte.
Apesar de ela estar inserida no PPDDH, hoje, é a própria parlamentar que arca com todos os custos da segurança que consome 75% do seu salário, o que evidencia um processo constante de violência política e material. “Eu lamento muito que aos olhos do Estado a minha vida não tenha um significado. Com o histórico de ameaça, eu não tenho proteção. É triste que o meu corpo com tantas potências políticas seja só usado a partir de uma ótica: a de mostrar o que é o Brasil das tantas violências”, afirma Benny Briolly ao Comitê.
O Dossiê Vidas em Luta traz casos que ilustram o que tem sido o Brasil para defensoras e defensores de direitos humanos, exatamente em um momento histórico, onde a equipe de transição busca por diagnósticos para saber quais são os desafios a serem enfrentados pelo próximo governo federal.
Por isso, em 21 de novembro, o Comitê também entregou ofício ao Grupo Técnico de Direitos Humanos do Gabinete de Transição, através de ofício, o diagnóstico e recomendações agora registradas no estudo do dossiê.
Recomendações
O dossiê do Comitê Brasileiro DDH, além de denúncias, também traz recomendações para o próximo ministro dos Direitos Humanos. Dentre elas, está a reestruturação do PPDDH ratificando a pesquisa “O começo do fim?” produzido pela Terra de Direitos e Justiça Global, organizações membros do Comitê.
As recomendações dos relatórios são enfáticas em afirmar que, para combater os ataques ao PPDDH sofridos durante o governo Bolsonaro, é necessário reverter: a baixa execução orçamentária; falta de participação social e transparência; a falta de estrutura e equipe para atendimento; a insegurança política na gestão; a inadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe; e o combate a demora e inadequação das medidas de proteção.
O Comitê também pede a revogação de diversas portarias e decretos que facilitaram o acesso às armas de fogo no Brasil. Sobretudo, que a nova Presidência da República implemente o Plano Nacional de Proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
Para o Comitê, somente com o enfrentamento à violência e violações contra DDHs sendo reconhecida enquanto política pública será possível proteger de verdade – e não simbolicamente – defensoras e defensores como Fernanda Kaingáng e Benny Briolly e tantos outros DDHs ameaçados no Brasil.
* Com informações do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos