O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH)[1], manifesta, por meio desta carta aberta, seu apoio à federalização da investigação e do julgamento da ação penal da Chacina do Cabula, em Salvador, Bahia. Essa ação do Comitê foi definida durante o III Seminário Nacional sobre Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos – Fronteira de Lutas, realizado no mês de setembro de 2017, em Brasíla.
A chacina de Cabula ocorreu no dia 6 de fevereiro de 2015, quando policiais militares das Rondas Especiais da Bahia (Rondesp) cercaram 18 jovens negros na Vila Moisés, bairro do Cabula, em Salvador (BA), e executaram sumariamente 12 deles. Apenas seis conseguiram escapar, fingindo-se de mortos. Naquela madrugada, os militares dispararam 500 tiros, quase 100 deles atingiram os corpos negros, conforme informações dos laudos.
Desde então, familiares das vítimas bem como defensoras e defensores de direitos humanos que integram a Campanha “Reaja ou será morta, reaja ou será morto” passaram a ser recorrentemente ameaçados, o que foi denunciado a relatorias da ONU e da OEA. A intimidação policial incluiu também os promotores e jornalistas[2] que cobriram este e outros episódios de violência policial.
O chamado Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) é possível quando há requisitos de grave violação de direitos humanos, risco de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais e evidência de que órgãos do sistema estadual não mostram condições de seguir no desempenho da função de apuração, processamento e julgamento do episódio. O caso do Cabula se encaixa em todas essas condições.
Apesar da investigação do Ministério Público, que evidenciava o caráter de execução sumária, por meio de testemunhas e laudos cadavéricos, a Polícia Civil instaurou inquérito que concluiu por mortes em decorrência de “confronto” e “legítima defesa” dos agentes de segurança. Na ocasião, a juíza substituta Marivalda Almeida Moutinho, da 2ª Vara do Tribunal do Júri, em uma decisão extremamente controversa[3] e sem instaurar o devido processo legal, absolveu sumariamente os nove policiais acusados de homicídio triplamente qualificado dos 12 jovens e tentativa de assassinato dos outros seis.
Nos recursos apresentados pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, foi demonstrado que houve violação ao devido processo legal, impossibilidade da produção de prova pela acusação e uso indevido da analogia (foi utilizado um artigo do Código de Processo Civil para uma questão que tem resposta no processo penal). Em junho de 2016, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, propôs ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) o deslocamento de competência (federalização) para apurar a chacina, devido às flagrantes violações e falhas referidas – pedido o qual foi reforçado pelo procurador em parecer enviado ao STJ no dia 13 de setembro. Cabe agora, aos ministros do STJ, avaliar a solicitação.
A Chacina do Cabula é emblemática por expor o racismo estrutural expresso nos assassinatos de jovens negros, moradores de favelas e periferias do país em ações sistemáticas de agentes de segurança. É inaceitável que o Estado, que tem por incumbência a garantia de direitos, permaneça violando até mesmo o direito fundamental à vida, imprimindo e fortalecendo as marcas do racismo de nossa sociedade.
O Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, diante do exposto, apoia publicamente a federalização do caso e insta que os ministros do STJ acolham o IDC apresentado.
Brasília, 13 de dezembro de 2017.
[1] Composto pelas seguintes organizações: Artigo 19, Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR, Associação de Apoio a Criança e ao Adolescente – Amencar, Central do Movimentos Populares, Centro de Defesa de Direitos Humanos de Sapopemba, Centro de Defesa de Direitos Humanos Gaspar Garcia – SP, Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra –ES, Coletivo Margarida Alves – MG, Comissão Pastoral da Terra – CPT, Conselho Indigenista Missionário – CIMI, CPP – Conselho Pastoral da Pesca, Dignitatis – Assessoria Técnica Popular, Grupo Tortura nunca mais da Bahia, Instituto de Direitos Humanos – MG, Justiça Global, Lajusa – Laboratório de Justiça Global e Educação em Direitos Humanos na Amazônia, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rede Justiça nos Trilhos, Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos – SDDH, Terra de Direitos.
[2]https://revistagambiarra.com.br/site/sinjorba-emite-nota-de-repudio-contra-ameacas-da-policia-militar-da-bahia-a-jornalistas/
[3] Informação divulgada pelo jornal El País (https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/25/politica/1437834347_077854.html)