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“Eu morei em um lugar que tinha rio, hoje eu vou lá com meus filhos e lá corre areia”

  • Date : 5 de dezembro de 2017

Comitiva organizada pelo Comitê esteve em Correntina por dois dias e conversou com moradores, lideranças e autoridades locais

A população de Correntina na Bahia está cada vez mais mobilizada em defesa das águas do rio Arrojado e contra os crimes ambientais que se perpetuam na região. Durante os dias 30 de novembro e 1 de dezembro, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH) organizou uma Missão “in loco” ao município, com representantes do Ministério Público Federal (MPF), Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), movimentos sociais e de direitos humanos, para conferir a situação da população local pós manifestações em prol dos rios e riachos da região.

A Comitiva conversou com moradores, lideranças e autoridades locais. Os relatos recebidos pelo Comitê trouxeram elementos sobre as violações e arbitrariedades que estão sendo cometidas no município. Algumas delas se estendem desde a década de 1970, como a emissão de outorgas que autorizam grandes empreendimentos a retirarem água do rio. Denúncias dão conta de que Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), responsável pela emissão de outorgas, fez uma distribuição indiscriminada delas para projetos do agronegócio, utilizando até hoje a mesma legislação da década de 1970, e sem qualquer fiscalização das ações desses empresários no que se refere à quantidade de água retirada do rio e sua destinação. Uma das razões que motivaram os protestos da população é a exigência para que essas outorgas sejam revistas, e que tais projetos cessem a retirada desenfreada de água do rio, que muitas vezes sacrificam a atividade dos pequenos agricultores da região.

“Quando uma comunidade ribeirinha denuncia a falta de acesso à água, ela atua na defesa dos direitos humanos. O uso da força policial não resolverá o problema. O Comitê seguirá acompanhando a apuração das denúncias feitas pelas comunidades ribeirinhas, principalmente no que corresponde aos crimes ambientais cometidos na região, a atuação de pistoleiros e abordagens policiais para intimidar crianças e adolescentes.”, disse Luciana Pivato, advogada da Terra de Direitos e representante do Comitê, analisando também o aparato policial enviado pelo governo do estado para o município, com o intuito de reprimir os protestos populares em defesa do rio Arrojado.

Denúncias

Em 22 de novembro, o Comitê já havia manifestado sua preocupação com a população de Correntina, por meio de nota pública em que pediu providências do Estado em resposta à onda de criminalização e violações detectadas durante as investigações sobre as manifestações.  Leia aqui a nota do Comitê

“Nossa vinda aqui também tem por objetivo dizer que fora de Correntina existem organizações preocupadas com a manutenção dos direitos da população. O maior crime é a quantidade de água que foi roubada das comunidades, com outorgas dadas sem exigir medidor e que não são fiscalizadas”, disse Gilberto Vieira dos Santos, representante do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) na Comitiva.

Mesmo com o grande número de policiais na cidade e as inúmeras denúncias feitas pela comunidade sobre intimidações e arbitrariedades nas investigações policiais, a população não recua. E está preparada para defender seu direito à água.

“O cerrado é muito importante para a gente, sem ele não somos capazes de sobreviver. Por isso, devemos lutar pelo nosso direito e não deixar que ninguém bote na nossa cabeça que o que estamos fazendo aqui é errado. A gente está aqui para lutar e não vai desistir, até que essas pessoas que querem acabar com o que é nosso por direito desistam. Estamos aqui para lutar e vamos lutar até o final”, disse uma jovem da escola São Rafael, durante a audiência pública organizada pelo Ministério Público estadual que discutiu os problemas como a redução da vazão dos rios da Bacia Hidrográfica do Corrente.

Audiência  

Quase três mil pessoas lotaram o ginásio de esportes da cidade, denunciando os problemas enfrentados. Os abusos cometidos por policiais civis, durante as investigações dos protestos ocorridos no mês de novembro, foram relatados pela Comitiva em reunião com a delegada do caso, Núncia Zaira Pimentel. A delegada reconhece que o movimento da população reflete uma insatisfação  de mais de 30 anos com os crimes ambientais cometidos e que ficam sem apuração.

“A pior derrota é ter uma população que não confia mais no poder público. O Ministério Público Federal irá cobrar o pleno funcionamento das instituições do estado. Estamos acompanhando o caso e não iremos nos furtar de pedir investigações na esfera federal, se assim for necessário”, lembrou o procurador federal Wilson Rocha, que também acompanhou a Comitiva. O procurador coordena o Grupo de Trabalho do Cerrado e propôs ao prefeito do município de Corretina, Nilson José Rodrigues, uma parceira entre o GT e o muncípio para a elaboração de um Projeto de Lei (PL) que garanta a proteção do Cerrado, com restrições à monocultura. A proposta foi feita durante a reunião dos representantes da Missão com o prefeito, na quinta-feira (30), e levada para a audiência pública realizada na sexta-feira.

Nos próximos dias, o Ministério Público estadual deverá divulgar os resultados e encaminhamentos retirados da audiência pública.

Sem diálogo com a população

A falta de diálogo do governo estadual é outro motivo de revolta entre a população. O governador Rui Costa, que recebeu os empresários e fazendeiros da região na mesma semana de um dos protestos, se nega a receber os representantes dos movimentos sociais que atuam na defesa das comunidades ribeirinhas e dos direitos humanos. Dois pedidos de audiência já foram encaminhados – um deles do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) –, mas até o momento não obtiveram resposta. Esse foi mais um pedido dos representantes da Comitiva em Correntina. Ao prefeito municipal e à delegada encarregada das investigações, eles reforçaram a urgência para que o governador receba a sociedade civil, e pediram a interveção das autoridades junto ao governador para confirmar essa agenda.

Visita às comunidades

Enquanto uma parte da Comitiva conversava com autoridades locais, outro grupo se dirigiu às comunidades da região de Correntina para ouvir os relatos dos moradores sobre as violações denunciadas durante as investigações.

“Eu tinha uma visão do que era ser polícia, daquele momento em diante desfez tudo que eu pensava da polícia. Eu que sou adulta, tenho 31 anos. Imagina os adolescentes?”, disse uma moradora de uma das comunidades visitadas por outro grupo da Comitiva. A moradora se refere à abordagem feita por policiais a três adolescentes que foram obrigados a entrar em um carro sem identificação, espancados e intimidados para citar nomes de pessoas que participaram das manifestações.

“Eles estão procurando líderes. Eu não tenho líderes. Tenho 31 anos, eu morei em um lugar que tinha rio, hoje eu vou lá com meus filhos e lá corre areia. Eu levo qualquer um de vocês lá para ver isso. Se eu não fiz nada há tempos atrás, era porque eu era criança, agora eu teria vergonha de deixar esses rios secar e não fazer nada”, ressalta a moradora.

Participaram da Missão organizada pelo Comitê, representes da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF); Fórum por Direitos e Contra a Violência no Campo; Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH); Conselho Indigenista Missionário (CIMI); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Via Campesina; Terra de Direitos (TDD); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ); Comissão de Justiça e Paz; Movimento de Apoio ao Trabalhador Rural de Brasília e Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR/Bahia) e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).