Opinião

Heloisa Helena Berto

  • Date : 4 de julho de 2017

Ser negro

O racismo é uma doença da mente e da alma. Ele mata mais do que qualquer epidemia, desumaniza a qualquer um que venha a afetar. A tragédia é que a cura está ao alcance de nossas mãos, no entanto não nós aproveitamos dela. 

Nelson Mandela em mensagem gravada à CMR em 01/09/2001

Após 129 anos de atraso, o Brasil começa a discutir e tomar providências, muito lentamente, sobre políticas públicas e ações afirmativas para integrar o negro na sociedade. Hoje contamos com ONGs e Movimentos Sociais que elevam a cultura negra. Mas tudo ainda é feito de forma vagarosa, embora a constância dos militantes seja um ponto positivo. Ainda temos tabus religiosos concretos que fogem da ordem social e atingem um patamar de segurança pública, com as expulsões dos centros religiosos. Isto identifica um racismo religioso, pois as referências à religião são contra a cultura negra, fazendo assim com que as religiões de matriz afro-brasileira não tenham um território livre para seu pleno desenvolvimento neste país laico.

A abolição ocorreu em 1888 e negros de sexos e idades diferentes se viram em meio a uma liberdade feita na obrigatoriedade. Na realidade, o Brasil foi o último país a retirar o sistema de escravidão para negros, só concedeu por determinação e depois de muita insistência e ameaças da Inglaterra. Mesmo depois da abolição, negros continuavam a ser tratados como escravos. Primeiro porque o país era muito grande e as notícias da abolição não chegavam a lugares mais ermos. Segundo porque nunca houve uma intenção humanitária de abolição, nunca houve o sentido de querer libertar um povo. O sentido de servidão sempre esteve presente tanto nos brancos que não sabiam viver sem os trabalhos dos negros e não admitiam pagá-los, tanto quanto com os negros que não sabiam ser livres.

A prova disso é que logo após começaram a chegar ao Brasil os imigrantes europeus, estes sim, poderiam ser pagos, conquistar terras, lutar por um espaço na sociedade, afinal eram brancos!

Aos negros não foram dadas oportunidades de integração à sociedade, eles sempre viveram a margem desta, fazendo a sobra de trabalhos que ninguém queria fazer. Nunca foram transmitidos a eles os direitos que tinham, sempre foram tratados como seres exóticos, de pele retinta, cultura estranha, religião demoníaca, inteligência mínima. Seres com tendência a violência. Que serviam de espécies para estudo, para se provar a inferioridade da raça. Muitos livros antigos se referem a este fato. Temos escritores, cientistas e filósofos famosos que dizem isto, como James Watson, norte-americano Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina no ano de 1962, e intelectuais brasileiros, como Monteiro Lobato, Silvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues.

Com tantos adjetivos inferiores que denegriam e enxovalhavam uma raça inteira, o país começou um processo de eugenia para branqueamento, “para melhorar o povo”. Éramos os negros de cabelo ruim, que fediam e mal sabiam falar. Que chamavam os demônios nas esquinas das noites escuras. A nós negros foi dada a culpa pela falta de progresso da nação, pela burguesia ávida por modernidade e por um cenário europeu que nunca teríamos. A Europa era um exemplo, com características e hegemonia branca. O euro-centrismo sempre esteve presente em nosso país.

Com muitos estupros e violências, começamos o branqueamento. Através deste processo, chegamos a ter 137 tipos de cores autodeclaradas, de acordo com o Censo e o Ministério de Saúde. Pergunto-me: é humanamente possível ter 137 tipos de tons de pele? SIM. E quantas raças, socialmente falando, deverão ter dentro dessas nuances infinitas de pretos e brancos? Duas: preto e branco. Ponto!

Chegamos então a 2017, 129 anos após a abolição. Somos o país com a segunda maior população de negros do mundo, onde morrem 153,4% mais negros do que brancos por homicídio, de acordo com o mapa do Ipea 2013. De acordo com apuração da CCIR – Comissão de Combate a Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro, as religiões de nossos ancestrais, as de matrizes afro-brasileiras, sofrem mais de 70% dos casos de ofensas, abusos e atos violentos.

Pense: vivemos em um país com a segunda maior população de negros do mundo, no entanto, de acordo com dados do IBGE, somente 54% da população do Brasil se autodeclara negra. O despropósito está na maior forma de racismo existente: a autonegação. O indivíduo não aceita seu corpo sua cor, sua raça, sua ancestralidade, a religião de seus ancestrais e faz do seu corpo um ato de racismo por uma vida inteira. Que os fazem negar uma cultura grandiosa, que os fazem morrer em vida tentando agradar à mídia, à moda ou aos padrões de beleza.

Sinto fúria!!!

Fico me remoendo entre definições, características e adjetivos. Negra, negrinha, mulata, bege, café com leite, parda, marrom bombom! Como pode a fúria não me consumir quando vejo tão claramente subterfúgios de racismo de preconceito, de não aceitação? De saber que vivo em uma sociedade com pessoas gentis, que falam e sorriem para mim, mas não aceitam minha cor, minha religião, meus ancestrais, minha história? Com pessoas que agem todo o tempo como se tivessem fazendo um favor de me olhar? Pessoas que não reconhecem como nos olham, que esperam menos de nós?

Somos obrigados todos os dias a provar que somos capazes. Trabalhamos sempre três vezes mais, quatro vezes mais, pensamos três ou quatro vezes mais, para que nos considerem iguais, ou na maioria dos casos menores, a um outro apenas porque a pele dele é branca. Vivemos a discutir com os beges da vida. Pessoas que não assumem sua cor, sua raça. Pessoas que foram educados a pensar que ser preto é ruim, é doloroso, é sujo, é feio, é fedorento. Pessoas que bloqueiam suas mentes para se sentirem iguais aos brancos.

Elas não percebem que nunca serão brancos. Que a negritude está em sua alma, em sua pele, em seu DNA. Elas não sabem o que é ser negro. Precisamos explicar a estas pessoas o que é ser negro. Precisamos trazer para fora de cada ser a negritude que existe dentro de cada um deles.

Ser negro não é tristeza infinita!

Ser negro não é dor sem fim!

Ser negro não é cárcere perpetuo!

Ser negro é ser antes de tudo guerreiro! É lutar com todas as forças por conquistas vistas no fim do túnel. É gritar alto, bater a mão no peito e se assumir preto! É saber que esta cor não lhe destrói… Não, ela constrói seres de forças mágicas e velozes!

Ser negro é converter tristezas em alegrias, é ter a maior das características procuradas no mercado de trabalho: RESILIÊNCIA. É ser feliz, guerreiro, livre em pensamentos mirabolantes. Porque o cárcere nunca será capaz de subjugar os pensamentos.

Portanto ser negro é ser gloriosamente livre, apesar de tudo e de todos. Pois só a liberdade nos traz a força para guerrear, a alegria que nos faz dançar, o alado grito que nos faz continuar!

Referências

BBC BRASIL. Por que as religiões de matriz africana são o principal alvo de intolerância no Brasil?. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160120_intolerancia_religioes_africanas_jp_rm>.

COSTA, Ricardo Cesar Rocha da. O pensamento social brasileiro e a questão racial: da ideologia do “branqueamento” às “divisões perigosas”. In: Revista África e Africanidades. Ano 3. N.10. Agosto, 2010. Disponível em: <https://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/10082010_16.pdf>.

CMI BRASIL. O mundo contra o racismo. Disponível em: <https://www3.brasil.indymedia.org/en/blue/2001/09/6293.shtml>.

EL PAÍS. Mais brasileiros se declaram negros e pardos e reduzem número de brancos. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/13/politica/1447439643_374264.html>

GUIA CONHECER FANTÁSTICO. Escravidão: a verdade sobre o holocausto negro. São Paulo, 2016.

INSTITUTO CIÊNCIA HOJE. Declarações racistas de Watson chocam cientistas. Disponível em <https://www.cienciahoje.org.br/noticia/v/ler/id/570/n/declaracoes_racistas_de_watson_chocam_cientistas/Post_page/10>.

ISER. As máscaras de guerra da intolerância. In: Comunicações do ISER. Número 66. Ano 31. Ano 2012. Disponível em: <https://lemetro.ifcs.ufrj.br/comunicacoes_iser.pdf>

ON LINE EDITORA. Racismo: a batalha histórica contra o preconceito. E-Book. Brasil, 2015.

TERRA. Homicídios no Brasil: 71,4% das vítimas são negras. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/homicidios-no-brasil-714-das-vitimas-sao-negras,6e8009c39f0f5410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html>.

* Heloisa Helena Berto, ou Iyalorixá Luizinha de Nanã, é Consultora Executiva e Defensora de Direitos Humanos da ONG Abayomi da Casa de Nanã, que luta pelo direito à escolha da religião, pela promoção da igualdade religiosa e o combate ao racismo.

 

O Blog da Defensora e do Defensor é um espaço plural que pretende dar voz a mulheres e homens que dedicam suas vidas à luta por direitos humanos. Os textos aqui publicados são de responsabilidade de suas autoras e autores e não refletem necessariamente o posicionamento do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.

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